sábado, 3 de maio de 2014

Kill Your Darlings (2013)






Avaliação: Ótimo

Se o primeiro longa de John Krokidas traz algo em comum com o "On the Road" (2012) de Walter Salles, para além de retratar escritores e obras da Gearação Beat, é a sua aspiração em transformar uma cinebiografia, assim como Salles fez com uma obra literária, em um estudo sobre a criatividade e, principalmente, aqueles que a inspiram. Muito além da ideia de musas que mitologia grega instituiu no imaginário popular, os personagens de Dean Moriarty em "On the Road" e de Lucien Carr em "Kill You Darlings" são enfant terribles, sexualmente ambíguos e localizados num espaço entre a agonia existencial, a vaidade e a necessidade de transcender o ambiente que tenta os definir.

E por isso mesmo objeto de criação dos 2 cineastas. Nesse sentido, Krokidas constrói uma elaborada trama que mais se preocupa em investigar o criar artístico do que em construir um suspense sobre o assassinato de David Kammerer por Lucien Carr, interpretados brilhantemente respectivamente por Michael C. Hall e Dane DeHaan. A história por si só já renderia não apenas por ser o conto de assassinato no meio da Geração Beat, mas também pelas relações intricadas dos seus personagens. 

O poeta Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe) acabara de entrar para a Universidade de Columbia, em Nova York, quando conhece Lucien Carr, que o apresenta a figuras importantes como Jack Kerouac e William Burroughs e a outras inoportunas, como Kammerer. Juntos eles dão início ao New Vision, um movimento que, inspirado pelo trabalho de predecessores como Yeats, Whitman e Rimbaud, daria origem à produção literária da Geração Beat. Se tanto Ginsberg quanto Kammerer se apaixonaram por Carr e sua persona magnética provocante, Krokidas parece nos induzir a acreditar que a transgressão, nesse caso, viria no criar não pelo objeto, mas para além do que esse objeto estimula. Se Kammerer nunca conseguiu criar nada relevante além dos trabalhos de faculdade de Carr, Ginsberg, contagiado pela paixão, a transforma em literatura. Talvez a diferença entre paixão e obsessão, ele parece nos dizer.

Os limites e efeitos do ser transgressor, e da sua oposição, o conformismo, são explorados de forma criativa, como numa bela seqüência em que logo após sugerir de forma chateada o nome de Shakespeare numa aula, Krokidas faz com que o personagem de Carr aja e interfira em um casal como o Puck de Sonhos de uma Noite de Verão num bar. Da mesma forma, o limite de Ginsberg no final do filme surge quando ele é colocado diante da necessidade de trair sua natureza homossexual para cumprir uma possível nascente obsessão. 

A homossexualidade aqui é uma espécie de linha que o objeto da criação teme em cruzar, assim como o Kerouac do filme de Salles. A sexualidade é, inclusive, um aspecto marcante nos 2 filmes e constitui posicionamentos políticos de releitura da Geração Beat e da época que os produziu. Além de reforçarem o dilema presente nas 2 obras: seria o artista predador ou redentor do seu objeto de inspiração? Por isso, adaptações literárias fiéis deveriam ser obras cinematográficas cada vez menos procuradas: o cinema não precisa nunca ser essa arte, supostamente inferior, de reforço na significação literária tal como um espelho puro e sim uma criação de diálogo e ressignificação.

The Wise Kids (2012)





Avaliação: Ótimo

É comum no discurso que adotamos, mais ainda em tempos de debates acalorados e por vezes rasos em redes sociais, considerarmos a religião do ponto de vista da oposição. Se você pertence a alguma corrente das igrejas evangélicas, então você é um devoto extremo, nunca em dúvida de sua crença em Deus ou dotado de alguma característica que desafie os dogmas dessas religiões, digamos, a homossexualidade. 

O que torna "The Wise Kids", o terceiro longa do roteirista e diretor norte-americano Stephen Cone, fascinante é conseguir englobar esses 3 tipos de tensões num ambiente religioso do sul dos Estados Unidos sem cair na armadilha fácil das oposições. Ao invés, ele constrói fortes personagens, ancorados em ótimas atuações de todo elenco e de uma direção bem segura, ainda que naturalista e pouco arriscada, ao navegar em um terreno repleto de armadilhas.

No filme, acompanhamos os últimos dias da vida paroquial antes que 3 adolescentes partam para as suas faculdades. Brea (Molly Kunz), filha do pastor e de um casamento em crise, começa a duvidar de sua fé em Deus, ao contrário de Laura (a ótima Allison Torem), que acredita fervorosamente nos dogmas religiosos que é ensinada. As duas planejam ir para faculdade juntas, ao contrário de Tim (Tyler Ross, que brilha com um personagem difícil), garoto inteligente e carinhoso e filho de pai viúvo e que experiencia a sua sexualidade pela primeira vez. Todos eles participam da peça dirigida pelo pastor, cuja produção serve de instrumento temporal narrativo.

Aqui, a clássica oposição cinematográfica religião versus materialismo cede lugar a uma exploração humana do que cada um desses personagens anseia e como negociar o desejo e as crenças com um ambiente que não os permite ou repudia, em primeiro momento. Não interessa a ele exaltar na narrativa a falta de crença de Brea ante o fervor religioso de Laura. Ambas as personagens são tratadas com o mesmo cuidado. Da mesma forma, se Laura a princípio não aceita a sexualidade de Tim, isso não significa que vai repudiá-lo, ainda que talvez tente mudá-lo num processo constante de compreensão e mutação. E Tim, por sua vez, não depende de se mudar para um grande centro urbano para ser quem gostaria de ser. O impasse mais difícil talvez seja dos pais de Brea. O pastor e sua esposa já parecem presos ao que deles esperam e encontram no afeto um pelo outro uma saída negociável para as suas vidas.



E, nas belas seqüências finais, Cone consegue brilhantemente expôr todo o anseio, inclusive o sexual, oprimido nos personagens, sem que isso, porém, os defina. Nesse ponto, ele já transcendeu qualquer possibilidade maniqueísta clássica e propôs um tipo diferente de cinema político. Aquele em que o sujeito/personagem em constante processo de mutação negocia todo o tempo sua existência com base em suas crenças e diante do seu meio. E, ainda sim, as escolhas são deles e só deles.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

SHORT TERM 12 (2013)




Avaliação: Excelente

Parece mesmo que 2013 foi um ano de virada no cinema norte-americano. O fato de brilhantes filmes terem sido completamente ignorados na temporada de premiações (inclusive pelos seus estúdios nas campanhas por trás dos bastidores) talvez apenas reafirme isso. "Short Term 12" é um desses grandes filmes, longa que nasceu de um curta do mesmo diretor e roteirista Destin Cretton. Ainda que a sua estética naturalista não traga nada de novo, com um roteiro consistente em mãos, grandes atores/atuações, com destaque para Brie Larson e John Gallagher Jr., e uma direção segura deles, encontramos o novo em meio ao clássico do cinema independente.

Grace (Brie Larson) é responsável pelas instalações de uma unidade de tratamento de adolescentes problemáticos, alguns órfãos, outros abandonados pelos pais. Junto com o seu namorado Mason (John Gallagher Jr.) e outros funcionários, um novato inclusive, eles lidam com questões que uma sociedade consumista e alienada do outro há muito já abandonou. Eles devem educar os adolescentes quanto às regras de convivência, mas nunca podem cruzar as linhas destinadas a psicólogos ou professores. Na teoria, porque na prática o que vemos é um trabalho de paciência e amor que levanta questões semelhantes às do documentário "O Ser e o Ter" (2002), uma obra-prima recente do cinema francês. Daí a estética quase documental funcionar tão bem.

Grace, Mason e todos os funcionários são uma espécie de última resistência do processo social de coexistência baseado no respeito ao outro e no amor. Eles se importam e parecem ser os únicos e últimos que farão isso por aqueles adolescentes. As seqüências em que eles só podem seguir os internos que fogem para além do território da unidade e conversar, sem poderem encostar neles, configuram verdadeiros clímaxes de suspense, porque Cretton parece nos lembrar que o impulso do respeito e do cuidado é sempre o último, quando pode ser o primeiro. É nesse aspecto que o filme transcende sua condição de drama social e adquire contornos de uma poderosa obra política.

Grace e Mason são eles mesmos crianças abandonadas, como descobrimos mais a frente. E tal abandono é contínuo para Grace e não para Mason, o que faz com que o dilema que o casal enfrenta no filme seja ainda mais tocante em muitos aspectos: Mason concede todo o amor que pode, enquanto Grace carrega marcas de ódio que podem prejudicar tudo. A justiça social é lenta e o processo de cura e redenção dos personagens parece levantar o que o próprio diretor e roteirista enxerga como solução a algumas das muitas mazelas da sociedade estadunidense. 


A geração que hoje tem de 20 a 30 anos seria, segundo ele, aquela que teria que lidar com as conseqüências de décadas de abandono e de ilusões que o american dream não mais conseguia financiar. Aqui, a crise financeira tem menos peso do que uma crise existencial de humanidade. Nesse aspecto, o jogo da cena final, que a princípio revela um mero truque de roteiro, tem um sentido simbólico muito maior. São eles que nas periferias do país ainda tentam, como guardiões, segurar a abandonada criança inconseqüente que a política pública interna norte-americana insiste em produzir.

JOE (2013)




Avaliação: Ótimo

Foram necessários ao menos os últimos 10 anos para que o cinema independente norte-americano finalmente entendesse que tal classificação não constituía um gênero por si só. Nascido como uma resposta ao status quo do sistema de estúdios em todas as décadas desde os anos 50, sempre foi, de fato, uma forma de filmar com pouco dinheiro e uma inventividade que parece nascida da revolta contra a não-representação pelo cinema mainstream, seja na forma ou nos temas. Essa concepção um tanto equivocada, que atingiu o seu auge em produções como "Juno" (2007) e "Pequena Miss Sunshine" (2006), foi construída em parte também por um dos primeiros filmes de David Gordon Green, "Prova de Amor" (All The Real Girls/2003).


Em "Joe", porém, não há espaço para paisagens e corpos em movimento embalados por trilhas de violão acústico. Ele parece retomar um rumo inciado em "Contra Corrente" (Undertow/2004): o trato através de uma estética de Faroeste de personagens brancos pobres, marginalizados, os "white trash" do sul dos EUA. Logo na cena de abertura, vemos o garoto Gary (o consistentemente excelente Tye Sheridan) explicando ao seu pai (o impressionante Gary Poulter, mendigo na vida real, e falecido, escalado para o papel por Green) a conduta errada que este adotou e o quanto ele não vai poder ajudá-lo. Nessa inversão, o tom do menino é paternal e a resposta do pai brutal. Ao garoto só resta seguir a linha do trem, para ele um impulso de vida e, para o pai numa brilhante seqüência posterior, uma compulsão destrutiva. Aqui já vemos o que parece ser o verdadeiro tom central da produção: o embate entre esse decadente mundo patriarcal, perdido em delusões por décadas, e a inevitável realidade para o filho, que necessita de trabalho para sobreviver e ajudar sua mãe e irmã apesar da violência do pai.


Essa possibilidade começa com uma troca de olhares entre Gary e Joe, interpretado por Nicholas Cage, longe de ser um meme e com um vigor e brilhantismo que não víamos desde que foi dirigido por Werner Herzog em "Vício Frenético" (The Bad Lieutenant: Port of Call - New Orleans/2009). Essa troca de olhares resume o artifício central: o enxergar o outro e não mais um arquétipo de vida que parece enraizado naquela sociedade. Não à toa, em determinado momento, nos questionamos se Gary é Joe e se Joe é a versão mais velha do menino; ele parece bem menos interessado em salvar a mocinha em perigo, o que é mostrado com primor ao quase sempre estarem de costas um pro outro, do que em atingir a redenção olhando de frente a miséria do garoto.


Se o
clímax é um tanto quanto esperamos, sem muitas surpresas, é porque não estamos num Thriller e, sim, num Faroeste. E, como nos grandes exemplares do gênero, "Joe" é uma dança da morte em que os personagens presos nos seus universos sociais morrerão e sobrevivem apenas aqueles que quebram com as lógicas a que estão condenados. Assinando essa ideia, o filme termina com o mesmo plano com que abre. Mas a violência do passado já deu lugar a uma redenção do novo. Vencedor de 2 prêmios no Festival de Veneza de 2013.